segunda-feira, março 14, 2005

Retalho Marginal


O poder da tua presença é verificado por mim desde que nasci. Existem pessoas com a capacidade extraordinária de nos atraírem que nem borboletas, sem que haja um foco a iluminá-las; capturam-nos sem qualquer rede, sem interessar do que falam mas criam o interesse por ser a sua boca que o diz; nem é o sorriso, nem o olhar, nem o gesto, nem o cheiro, mas qualquer coisa entre isto tudo, com um pouco de tudo, qualquer coisa de inexplicável. Há sempre uma pessoa na qual concentramos (mais) a nossa atenção numa mesa de jantar; essa pessoa esta noite, novamente, és tu.

A avó a pessoa mais velha à mesa, mas entre três pratos de cada lado, tu numa extremidade de caniche ao colo, eu na outra. Um frente a frente onde me notas, transparente, aos teus olhos. Os teus amigos de hoje são uma salada russa: o casal cientista, a hibernar em casa há cinco anos num projecto secreto, segundo ele, enquanto faz questão que a avó se sente entre eles e penso que a avó uma lufada de ar fresco para os dois; a mulher espanhola que vive em Óbidos e levanta-se com o sol para fazer construções de areia na praia, quando ganha a vida nas muralhas onde vende postais turísticos – artesanato, sublinha ela; o playboy quarentão rico e rico e o que faz – perguntou a espanhola, gasto dinheiro, respondeu ele; o escultor sempre a fungar de indicador no nariz, mas diz-se viciado no lixo – matéria-prima, emenda e funga.

Não penses que detesto estes jantares. Gosto desta tua mania de organizares presunto e queijos e vinho, primeiro prato e vinho, segundo prato e vinho, ignorando por vezes a sobremesa, mas sempre – tu e todos, a avó não – a prestar vassalagem a Baco. Brindo-te por confrontares pessoas, perspectivas com ideias e sem ideias, desde o génio ao fala-barato. Admiro-te a facilidade em desencantar seres humanos; coisas de artista, talvez. Admiro-te, sem opção, nas paredes sufocadas por quadros. A casa é tua. Os quadros exibem Margarida assinado nos quatro horizontes desta casa, Margarida artista, Margarida a pintora, idolatrada, criadora de noites onde metade jantar metade tertúlia, Margarida olha aqui, ouve isto, Margarida nome de flor, Margarida no meu sangue, deusa de todos – minha não – Margarida minha mãe.

Discutes com todos sobre tudo, sem me apresentares. Acho que te envergonhas de mim, que possa contar que o meu primeiro falar foi au-au e não Andy Warhol, o que é compreensível, apaziguou-me a avó, e apaziguamo-nos com a dúvida de porque raio chamar pelo bicho assim, um caniche – para mim – ou a coqueluche ao teu colo, a ovelha anã, classifica a avó. Acho que se fosse cão gostavas de mim, ou talvez rapaz porque Ana não é o mesmo que Andy. Mas se surgi na partida, rumo à meta da minha vida toda, foi porque disparaste a pistola. Margarida, a pistoleira. Engravidaste. Bang! Nove meses depois, era eu a lançar-me à pista da vida. De imediato, foi morto o meu desejo em satisfazer-te; um nome de cão do tamanho do próprio cão, gigante, a roçar-me o focinho no berço e eu: Au-au, e tu: Não; Andy Warhol. Bang! À segunda palavra não percebeste porque eu: Mamã, e tu à procura da mamã ou da pistola, a tua forma de me dizer sou a Margarida qual mamã, tenho lá tempo para ser mãe. Margarida, artista em flor. À terceira calei-me. Ignoraste. Foi a avó comigo ao pediatra porque a menina ainda não anda, nem gatinha, é mais um rastejar como os soldados na recruta, percebe senhor doutor? Não percebeu. Errado. Não ligou. Criança estúpida, pensou contigo. Não te interessa, mas agora até caminho de costas direitas, barriga encolhida e de livro invisível na cabeça. Ensinou-me a avó. Ontem. Descobriu-me nua a sorrir ao espelho, descobriu-me e palavra que nem falei. Palavra, que nenhuma palavra. Também fui mulherzinha aos dezasseis, a diferença é que era casada com o teu avô, falou ela. Bang! E tu Margarida, com que idade a primeira vez? E eu, em qual das vezes fui? Fotógrafo, escritor, ladrão, um entre um milhar de jantares, alguém desta mesa? O teu pai… nem a mim se ela diz, diz-me a avó, quando o que ela quer dizer é; nem a Margarida o sabe. Bang!

Não penses que te detesto. O poder da tua presença é verificado por mim desde que nasci; não é o sorriso, nem o olhar, nem o gesto, nem o cheiro. Admiro é o domínio com que ris e gesticulas aos teus amigos, enquanto sabes-me entre isto tudo e tens que me engolir, ainda que transparente, reconheces-me como um retalho marginal em ti. Margarida, com uma nódoa.

Esta noite tu numa extremidade, eu na outra, a mesma mesa, novamente.



domingo, março 13, 2005

Take #4


MUDA

Entre a língua que lambeste
e uma palavra para te dizer
não houve opção
quando cortei a língua


CEGO

Perdi os olhos
algures na ausência do teu nome em mim
mas qual opção
como posso procurar-te se estou cego

quinta-feira, março 10, 2005

A Mulher que Canta Fados e Chora Rímel


Segunda-feira, dia de encaminhar o xaile pelo Bairro Alto onde uma calçada deserta, a porta encostada, o Chico não está mas a Tasca está aberta. A luz é de vela e não há velas, um silêncio de mortos e pessoas sentadas e pessoas em pé e pessoas agarradas pelas paredes. Há pessoas, há fado. O que seria do fado sem pessoas? O que seria uma pessoa sem fado?

“Palmas, palmas!”

No centro, o apresentador de vozes. Ele, rouco, exibe-me como “uma mulher com quarenta anos de fado e a mesma frescura dos vinte”, e mente. Eu sorrio e perdoo-lhe porque me minto, também. Sessenta anos ao espelho. Por isso, mentes quando dizes a mulher “fresca” que sou, como quando eu colho ramos de cabelo que trato com um pincel e minto aos cabelos brancos; minto à pele baça; mergulho as mãos no frio do creme e passo-o pela cara; depois visto-me de preto, pareço menos roliça, e digo que é por ser Segunda-feira. E à Segunda, eu canto fados na Tasca do Chico.

“Palmas, palmas!”

Duas guitarras. A barriga roça pelas cordas de uma, no meu caminho até à outra. Chego-me de boca ao meu amigo Tó Pê e antes que lhe chegue ao ouvido, antes que eu fale, ele diz-me: “Canta aquele de quando abandonaste o teu marido para ficares comigo”. Murmuramos tão baixinho que ouço os jovens da mesa ao lado rir. Peço-lhe: “Para começar, o Fado da Isabel, em sol”, como se o fado fosse da Isabel e não meu; e é do Tó Pê, é do apresentador, dos rapazes do indicador esticado; um a pedir presunto à empregada – aquela, com mais rímel que eu e ainda assim o olhar mais leve, ainda assim o fado da Isabel também é teu –, o outro indicador de rapaz gesticula mais vinho para as raparigas e eu; peço a uma delas que apague o cigarro – como se fosse o fumo que me tosse a voz, e não a idade, não a velhice. E num movimento de cabeça mútuo – o meu mais vagaroso –, mudo, combino com a outra rapariga: ela deixa o vinho manchar o copo, agora, que deixarei o sangue manchar-me a alma.

“Palmas, palmas!”

Desce o pano dos olhos e num acorde, à minha vida mistura-se um fado que não é só meu. Canto o fado de um estendal em Alfama, canto-me a mim à tardinha, a manta axadrezada nos joelhos aquando a repetição da novela da noite, canto a sombra de um beijo de namorados, canto-me no intervalo desse beijo (ou será da novela) a dar de comer ao gato, canto-me a ausência de bons dias, um até logo e o meu noivo marinheiro que não voltou, ou será o noivo da Isabel que não volta, cantam-lhe as canoas no Tejo e cantam comigo, canta fadista de rosto emoldurado nas paredes da Tasca, canta o bêbado ao lampião, como canto a qualquer canto em minha casa, qualquer hora sem ninguém que me mande calar, que me faça rir, que peça não chores, canta, canto na Tasca onde moram fados e quem tem casa não é vadio. Canto-me de desencanto na voz e disfarço que choro pelo fado da Isabel e não pelo meu, quando me nascem nos olhos dois riachos de água negra em cada canto.

Canto até que o sangue me manche a alma. Porque a voz, há que tempos que me dói.

“Palmas.”


segunda-feira, março 07, 2005

Take #3


Para o P., que escreve como ele, com voz, a quem roubei outra voz


♀: «Escreveste outra vez ânus. Tens um fascínio qualquer por esta palavra. Ou talvez não bem a palavra.»
♂: «Talvez seja qualquer tique freudiano.»
♀: «Ou não bem um tique.»
♂: «Tenho uma certa tendência para utilizar palavras associadas a significados socialmente incorrectos.
Faz-me muita impressão o mau uso que se faz das palavras... como se houvesse palavras más e palavras boas.»
♀: «Ânus é associado a "significados socialmente incorrectos"? Homossexualidade? Sexo anal?»
♂: «É porco, abjecto, para estar escondido.»
♀: «Escondido? Não me faças rir.»
♂: «Não? Em termos gerais…
É considerado algo de muito privado.»
♀: «É mais fácil veres um rabo que um pénis ou uma vagina.»
♂: «As nádegas, queres tu dizer. Eu refiro-me à “interface”.»
♀: «Ao orifício.»
♂: «Chamemos-lhe porta de comunicação com o mundo.»
♀: «O nome é irrelevante.»
♂: «Eu também acho... mas a maior parte das pessoas não.»
♀: «Achas que chocas ao escrever "ânus"?»
♂: «Num mundo esterilizado e ainda preconceituoso termos como “ânus” são ainda, em grande medida, alvo de censura. Basta reparar na quantidade de vezes que se utilizam na linguagem corrente.
Isto se tirarmos a utilização cómica do seu sinónimo: “cu”.»
♀: «Cómica?»
♂: «Exactamente por ser cómica denota um incómodo na forma como se lida com o conceito. “Vai apanhar no cu” e quejandos.»
♀: «Portanto... um fetiche com a palavra, podia ser um fetiche com a imagem real em si.»
♂: «É isso que eu tento destruir: o fetiche. Porque o fetiche é sempre uma mentira, que serve mais para esconder que para revelar.
É muito bonito em cenários de possível perversão, mas a maior parte da vida é desenrolada em cenários de normalidade.»
♀: «Não concordo. Um fetiche não serve para esconder; o que é mais "misterioso" não significa necessariamente que tem como objectivo a fuga. Estás tu a dar um sentido negativo, quando o que por vezes é mais resguardado tem outro sabor. Por outro lado, na maior parte da vida, os cenários de "normalidade" são exteriores. Dentro de 4 paredes tens toda a perversão e mais alguma.»
♂: «Concordo em parte... Obviamente que uma refeição tem tanto mais sabor quanto maior o apetite: eu funciono muito segundo isto. Mas num plano emocional. Não quando tento ler/narrar o mundo como um universo poético – não gosto muito de utilizar esta palavra – que se bem que também contenha imensos ingredientes emocionais, estes só alcançam maior impacto quando expostos num contexto de extrema e profunda liberdade.
Em termos estatísticos, não acho que dentro das 4 paredes isso seja significativo. No entanto, julgo que o que gosto é da liberdade “sem acentos” (lembras-te?) na utilização das palavras.
♀: «“Termos estatísticos”? As estatísticas? Achas realmente que aí se revela o mais puro e cru de cada um?»
♂: «Não. Não acho, senão nunca escreveria como escrevo. Mas inevitavelmente acabo por ser confrontado com as tendências e comportamentos mais significativos e influentes (pelo menos no curto prazo) do que me rodeia no dia a dia.
♀: «Acredito na "perversão" do dia-a-dia e não no "desenrolar de cenários de normalidade".»
♂: «Depende de que lado dos espectros colocas o referencial de observação.»
♀: «É tudo aparência; mas o objectivo é veres "além".»
♂: «Exacto! Para lá da forma e dos significados “dicionáricos” da palavra.»
♀: «Os que vêem (ou fingem) a normalidade nada têm de novo, de interessante, de vivo!”
♂: «Estou a ver que as nossas conversas são sempre preenchidas por perspectivas semelhantes, mas que, fruto da nossa personalidade, parecem ser sempre extremamente dissonantes... bonito.»
♀: «A minha personalidade... sabes lá tu disso!»
♂: «Sim, sei eu lá.»
♀: «Rocei-te com a lâmina da espada, de propósito. Mas não há problema, é de esgrima.»
♂: «Tinha uma rolha na ponta?»
♀: «Não perguntes; revê o que sentiste.»
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