Janela de Carne
“não me sobra um centímetro no coração onde não haja uma ferida”
António Lobo Antunes, Eu hei-de amar uma pedra
Estou a olhar a noite pela janela da cozinha porque já nem preciso de relógio há a luz da marquise do 4º andar em frente a acender e um bater acelerado do meu coração um bater não um estrondo dois estrondos três (consegues ouvir?) e não também já passou afinal foi só o comboio das nove e meia a passar e o meu coração viciado em ti e sístoles e diástoles viciado ou em ti ou sexo ou amor viciado em ti e nas nove e vinte e nove e cinquenta e sete segundos e um estrondo dois estrondos três (consegues perceber?) preciso lá eu de relógio se trago um coração que me bate o aviso de que o comboio das nove e meia ia passar ela veio vem ela veio vem um vaivém dia-a-dia que tu nunca percebes mas aí veio o bicho-papão dos carris quase a engolir-te a casa em ruído desta vez quase o cheiro da chaminé melhor cheira a carris a carruagens de suor e cansaço e ao apetite dela para jantar (consegues cheirar?) e ai de ti infeliz surdo mentecapto sem olfacto inoportunamente falas
— Amo-te, despacha-te, amanhã recompenso-te.
Estou a descer as escadas do teu prédio sem ligar o interruptor porque reconheço pelos pés a tua morada num envelope reconheço-te a morada de pele na pele pela minha pele boca língua saliva cabeça tronco membros e membro e esqueço-me da tua alma que essa não sei onde mora embora more em ti um lugar de escuro frio húmido onde imagino uma sombra que não é sombra e nunca deixará de ser sombra como imagino o que possa ser uma alma que não é a tua porque essa não sei onde mora como eu se descoberta neste corredor de noite pudesse ser a tua mulher saída do comboio mas não sou porque essa não tarda nada entra na casa de onde saí e ai de ti infeliz desalmado anjo em pecado zunes em mensagem no meu telemóvel
— Amo-te, amanhã despacha-te, recompenso-te.
Estou a olhar a noite pela janela do meu carro enquanto cantarolo dorme dorme meu menino que o comboio-mulher-papão chegou ao seu destino como os aborígenes sem métodos métricos entoam canções para medir distâncias como o meu coração amanhã se ainda viciado há-de bater um dois três e qual bater estrondos (conseguirás ouvir?) e não também agora há a chave da tua mulher chegada com destino fechadura só ela fechando a porta com as costas ela só num suspiro home sweet home e basta porque afinal já aí não estou foi só o comboio das nove e meia engolir-te a casa e o meu coração viciado avisando já cá não devias estar viciado por ti ou em ti ou esquecido de mim excepto às nove e vinte e nove e cinquenta e sete segundos um dois três já cá não devias estar (conseguirás perceber?) como raio combino amor com amanhã se o amanhã não se despacha porque tem o seu tempo e a recompensa do tempo é o amanhã que virá vem virá vem um vaivém dia-a-dia que tu nunca percebes no meu coração mas aí vem a mulher-papão de aliança quase a engolir-te a cabeça tronco membros e membro com a boca língua saliva e a esquecer-se onde mora a tua alma não esquece quem és não não sabe quem és e afinal quem é ela o que são vocês os dois porque estavam escondidos fios de cabelo que não são dela por debaixo da almofada dela sim diz-me de quem são sim diz-lhe de quem são e afinal quem sou eu que desta vez deixei quase todo o meu cheiro no lençol melhor o cheiro da camomila em ondas amarelas de cabelo arrancado por ti deixei-me de mim por ti sim deixei-te um travo a camomila escondendo cabelos meus por saber qual a almofada dela e sim ela que os cheire também (conseguem cheirar?) e ai de ti infeliz proscrito bandido punido antes que a luz da marquise do 4º andar em frente se apague atendo-te ao telemóvel
— Amo-te, recompensa-me, estou despachado.
Vou fingir que não percebi melhor vou fingir que percebi que fugiste melhor vou fingir que percebi que fugiste mas que foi engano e mato o telefonema para permanecer a olhar a noite mas pela janela do meu quarto e repensar as minhas fugas às janelas enquanto fujo de vez contigo do pensamento tranco a janela de carne que em mim abriste e fico sem comboios no coração e fosse eu a escrever-me neste texto encarava isto como pôr uma vírgula, para o texto respirar.
Já agora amo-te. Amanhã logo sinto.
António Lobo Antunes, Eu hei-de amar uma pedra
Estou a olhar a noite pela janela da cozinha porque já nem preciso de relógio há a luz da marquise do 4º andar em frente a acender e um bater acelerado do meu coração um bater não um estrondo dois estrondos três (consegues ouvir?) e não também já passou afinal foi só o comboio das nove e meia a passar e o meu coração viciado em ti e sístoles e diástoles viciado ou em ti ou sexo ou amor viciado em ti e nas nove e vinte e nove e cinquenta e sete segundos e um estrondo dois estrondos três (consegues perceber?) preciso lá eu de relógio se trago um coração que me bate o aviso de que o comboio das nove e meia ia passar ela veio vem ela veio vem um vaivém dia-a-dia que tu nunca percebes mas aí veio o bicho-papão dos carris quase a engolir-te a casa em ruído desta vez quase o cheiro da chaminé melhor cheira a carris a carruagens de suor e cansaço e ao apetite dela para jantar (consegues cheirar?) e ai de ti infeliz surdo mentecapto sem olfacto inoportunamente falas
— Amo-te, despacha-te, amanhã recompenso-te.
Estou a descer as escadas do teu prédio sem ligar o interruptor porque reconheço pelos pés a tua morada num envelope reconheço-te a morada de pele na pele pela minha pele boca língua saliva cabeça tronco membros e membro e esqueço-me da tua alma que essa não sei onde mora embora more em ti um lugar de escuro frio húmido onde imagino uma sombra que não é sombra e nunca deixará de ser sombra como imagino o que possa ser uma alma que não é a tua porque essa não sei onde mora como eu se descoberta neste corredor de noite pudesse ser a tua mulher saída do comboio mas não sou porque essa não tarda nada entra na casa de onde saí e ai de ti infeliz desalmado anjo em pecado zunes em mensagem no meu telemóvel
— Amo-te, amanhã despacha-te, recompenso-te.
Estou a olhar a noite pela janela do meu carro enquanto cantarolo dorme dorme meu menino que o comboio-mulher-papão chegou ao seu destino como os aborígenes sem métodos métricos entoam canções para medir distâncias como o meu coração amanhã se ainda viciado há-de bater um dois três e qual bater estrondos (conseguirás ouvir?) e não também agora há a chave da tua mulher chegada com destino fechadura só ela fechando a porta com as costas ela só num suspiro home sweet home e basta porque afinal já aí não estou foi só o comboio das nove e meia engolir-te a casa e o meu coração viciado avisando já cá não devias estar viciado por ti ou em ti ou esquecido de mim excepto às nove e vinte e nove e cinquenta e sete segundos um dois três já cá não devias estar (conseguirás perceber?) como raio combino amor com amanhã se o amanhã não se despacha porque tem o seu tempo e a recompensa do tempo é o amanhã que virá vem virá vem um vaivém dia-a-dia que tu nunca percebes no meu coração mas aí vem a mulher-papão de aliança quase a engolir-te a cabeça tronco membros e membro com a boca língua saliva e a esquecer-se onde mora a tua alma não esquece quem és não não sabe quem és e afinal quem é ela o que são vocês os dois porque estavam escondidos fios de cabelo que não são dela por debaixo da almofada dela sim diz-me de quem são sim diz-lhe de quem são e afinal quem sou eu que desta vez deixei quase todo o meu cheiro no lençol melhor o cheiro da camomila em ondas amarelas de cabelo arrancado por ti deixei-me de mim por ti sim deixei-te um travo a camomila escondendo cabelos meus por saber qual a almofada dela e sim ela que os cheire também (conseguem cheirar?) e ai de ti infeliz proscrito bandido punido antes que a luz da marquise do 4º andar em frente se apague atendo-te ao telemóvel
— Amo-te, recompensa-me, estou despachado.
Vou fingir que não percebi melhor vou fingir que percebi que fugiste melhor vou fingir que percebi que fugiste mas que foi engano e mato o telefonema para permanecer a olhar a noite mas pela janela do meu quarto e repensar as minhas fugas às janelas enquanto fujo de vez contigo do pensamento tranco a janela de carne que em mim abriste e fico sem comboios no coração e fosse eu a escrever-me neste texto encarava isto como pôr uma vírgula, para o texto respirar.
Já agora amo-te. Amanhã logo sinto.