quinta-feira, outubro 27, 2005

Janela de Carne

“não me sobra um centímetro no coração onde não haja uma ferida”
António Lobo Antunes, Eu hei-de amar uma pedra




Estou a olhar a noite pela janela da cozinha porque já nem preciso de relógio há a luz da marquise do 4º andar em frente a acender e um bater acelerado do meu coração um bater não um estrondo dois estrondos três (consegues ouvir?) e não também já passou afinal foi só o comboio das nove e meia a passar e o meu coração viciado em ti e sístoles e diástoles viciado ou em ti ou sexo ou amor viciado em ti e nas nove e vinte e nove e cinquenta e sete segundos e um estrondo dois estrondos três (consegues perceber?) preciso lá eu de relógio se trago um coração que me bate o aviso de que o comboio das nove e meia ia passar ela veio vem ela veio vem um vaivém dia-a-dia que tu nunca percebes mas aí veio o bicho-papão dos carris quase a engolir-te a casa em ruído desta vez quase o cheiro da chaminé melhor cheira a carris a carruagens de suor e cansaço e ao apetite dela para jantar (consegues cheirar?) e ai de ti infeliz surdo mentecapto sem olfacto inoportunamente falas
— Amo-te, despacha-te, amanhã recompenso-te.
Estou a descer as escadas do teu prédio sem ligar o interruptor porque reconheço pelos pés a tua morada num envelope reconheço-te a morada de pele na pele pela minha pele boca língua saliva cabeça tronco membros e membro e esqueço-me da tua alma que essa não sei onde mora embora more em ti um lugar de escuro frio húmido onde imagino uma sombra que não é sombra e nunca deixará de ser sombra como imagino o que possa ser uma alma que não é a tua porque essa não sei onde mora como eu se descoberta neste corredor de noite pudesse ser a tua mulher saída do comboio mas não sou porque essa não tarda nada entra na casa de onde saí e ai de ti infeliz desalmado anjo em pecado zunes em mensagem no meu telemóvel
— Amo-te, amanhã despacha-te, recompenso-te.
Estou a olhar a noite pela janela do meu carro enquanto cantarolo dorme dorme meu menino que o comboio-mulher-papão chegou ao seu destino como os aborígenes sem métodos métricos entoam canções para medir distâncias como o meu coração amanhã se ainda viciado há-de bater um dois três e qual bater estrondos (conseguirás ouvir?) e não também agora há a chave da tua mulher chegada com destino fechadura só ela fechando a porta com as costas ela só num suspiro home sweet home e basta porque afinal já aí não estou foi só o comboio das nove e meia engolir-te a casa e o meu coração viciado avisando já cá não devias estar viciado por ti ou em ti ou esquecido de mim excepto às nove e vinte e nove e cinquenta e sete segundos um dois três já cá não devias estar (conseguirás perceber?) como raio combino amor com amanhã se o amanhã não se despacha porque tem o seu tempo e a recompensa do tempo é o amanhã que virá vem virá vem um vaivém dia-a-dia que tu nunca percebes no meu coração mas aí vem a mulher-papão de aliança quase a engolir-te a cabeça tronco membros e membro com a boca língua saliva e a esquecer-se onde mora a tua alma não esquece quem és não não sabe quem és e afinal quem é ela o que são vocês os dois porque estavam escondidos fios de cabelo que não são dela por debaixo da almofada dela sim diz-me de quem são sim diz-lhe de quem são e afinal quem sou eu que desta vez deixei quase todo o meu cheiro no lençol melhor o cheiro da camomila em ondas amarelas de cabelo arrancado por ti deixei-me de mim por ti sim deixei-te um travo a camomila escondendo cabelos meus por saber qual a almofada dela e sim ela que os cheire também (conseguem cheirar?) e ai de ti infeliz proscrito bandido punido antes que a luz da marquise do 4º andar em frente se apague atendo-te ao telemóvel
— Amo-te, recompensa-me, estou despachado.
Vou fingir que não percebi melhor vou fingir que percebi que fugiste melhor vou fingir que percebi que fugiste mas que foi engano e mato o telefonema para permanecer a olhar a noite mas pela janela do meu quarto e repensar as minhas fugas às janelas enquanto fujo de vez contigo do pensamento tranco a janela de carne que em mim abriste e fico sem comboios no coração e fosse eu a escrever-me neste texto encarava isto como pôr uma vírgula, para o texto respirar.
Já agora amo-te. Amanhã logo sinto.

quarta-feira, outubro 19, 2005

Que A Força Esteja Comigo

Na quarta classe os meus amigos queriam ser futebolistas ou polícias, as miúdas na maioria bailarinas, apenas uma murmurou “Princesa”, e o caixa-de-óculos da turma disse “Astronauta”, enchendo-me de coragem na resposta à professora: “Jedi!” A princípio, achei que por a mulher não me ter levado a sério, os olhos dela se tornaram elásticos, esticaram esticaram, até não perceber o que era olho e onde estavam as sobrancelhas. Foi assustador aquele olhar ter como alvo a minha cara. Os Jedi são guardiães da paz e da justiça, o lado bom da Força. Aprendera isso na noite passada com o meu primo mais velho a dormir lá em casa e no vídeo a cassete dele: Episode V – The empire strikes-back. Foi então que percebi, tal olhar, do negro da ardósia, onde a giz branco ela listou a profissão de cada um, era raiva e malvadez, agora eu sabia. Sabia que o lado negro da Força era assim. Que os Sith nunca estiveram extintos e o seu mestre Darth Vader tinha servos assim, com olhares daqueles. Por isso no dia seguinte, fui de roupão castanho para a escola. Levei o meu primeiro sabre, que não tinha luz nem som, mas enfrentei-a na sala dizendo “Wuaaaommm, wuaaaommm”, e os olhos dela outra vez elásticos frente ao cabo de vassoura com tinta fluorescente que eu movia qual Luke Skywalker. O meu primeiro contacto com o lado negro da Força. A minha professora. É preciso ser destinado para estas coisas.

Do 5º ano ao 9º fui barra em Inglês. Apliquei-me imenso, na certeza de que no Templo Jedi, o treino e os estudos seriam dados nesta língua, os episódios do Star Wars não o mentem. Devo também admitir a sorte nas professoras de Inglês, nenhuma delas evidenciou o Mal em si, ao contrário da outra, a da primária. As outras disciplinas, uma razia. Talvez por isso no 9º ano completei os estudos e o meu pai ufano: “Arranjei-te emprego, aprendiz de mecânico de aviões, de acordo com o teu gosto por naves”. “Não são essas naves”, corrigi. “Anda tudo no ar.” Apeteceu-me dizer-lhe que quem anda no ar é ele. A cabeça dele. Nunca disse nada. A mesada secou e dinheiro é dinheiro. Assim, troquei a túnica do capuz castanho pelo fato-macaco azul sulfato, a cor da empresa onde há 2 anos já não sou aprendiz. O ordenado inchou. Isso nota-se na minha fantástica colecção de miniaturas do Star Wars. Actualmente posso reviver as minhas cenas favoritas onde quiser. Ainda hoje, houve o fim do Episódio IV com Obi-Wan Kenobi morto na minha almofada. Depois retirei-o porque ele ressuscita. Logo a seguir, recriei o final extraordinário do episódio fundamental da segunda saga, o V, aquele a ensinar-me como enfrentar a outra na primária, a luta do Bem contra o Mal. Mais uma vez assisti-o na minha própria cama, colocando Luke a ouvir Darth Vader: “Eu sou o teu pai”. Que confronto. Que diálogo. A surpresa da minha vida.

Tudo isto começou na quarta classe e isso persegue-me, culpo a minha namorada. Emendo: ex-namorada. Nunca pensei que após 17 anos ela continuasse com a profissão de “Princesa”. No mínimo ridículo. Há pessoas realmente infantis para toda a vida. Todos estes anos a vê-la com dois totós enrolados de cada lado e a avisá-la, a avisá-la, o que um gajo não faz por amor. Até ao momento. “Mas porquê?”, perguntou-me, não tem meia hora. “Não percebes que Princesa Leia há só uma e não és tu? Esse penteado é dela!” Custou-me este mundo e todos os astros do Universo, mas não vamos entrar por aí, coisas do amor, não vamos entrar por aí. Há pessoas que não sabem quando é altura de stop e parou de fingir, parou de brincar, parou o faz-de-conta. Ela é dessas. Para me refazer do choque, só um site que encontrei na Internet: “Encontra o teu nome no mundo Star Wars!” António Júnior, preencho. O meu novo nome a aparecer: Júnónio Antior. Real, não é? É esta Guerra que me dá força, a Força. E não sou único. Recebi um e-mail encaminhado por outros (ia escrever fãs mas não) seguidores da série, a informar que não estou só, que posso juntar-me a eles. Juntos são já 16% dos britânicos a seguir a religião Jedi. Como ignorar? Tudo isto começou aos dez anos, cedo, eu sei, eu sei que o candidato a Jedi é detectado, identificado, levado para a Ordem em criança. Só estive no lugar errado à hora certa. Parto tarde, mas parto a horas para terras de Sua Majestade. Eu sou um Jedi!

Espero que este e-mail o encontre com a Força, Sr. George Lucas.

Júnónio Antior

segunda-feira, outubro 17, 2005

Não me atires da cama que eu não sou de borracha

Para o Duarte, pelos pormenores verídicos
(tudo o mais fica entre nós)


“O amor é a causa do movimento da natureza.”
Platão


Pára de gritar por mim. A tua boca abre, fecha, abre e fecha como um pêndulo a seduzir-me os olhos. Sou incapaz de te perceber além da leitura dos lábios, de me perceber de joelhos na carpete, ou o porquê de tu continuares em pé, nas alturas, lembrando uma deusa apocalíptica, a lançar-me relâmpagos do fundo da garganta.

(“Tiago! Tiago!”)

Ouvir-te berrar-me é uma constante. O casamento é feito de constantes. Chegar a casa atrasado para jantar e ver-te amuada. Ser noite de sábado com jogo de futebol e depois entrar no quarto onde descubro-te adormecida há que tempos, porque não fomos ao cinema. Fazer amor, dizer amor, perdoar amor.

(“Tiago! Tiago!”)

De certo que chamas por mim, porque prometeste aconteça o que acontecer, fico contigo. Além disso, hoje é sábado, não vi o jogo e fomos ao cinema. Ao menos tinhas isso em conta, e paravas de gritar. Nem que seja por eu estar no centro da sala ajoelhado a teus pés. Nem que fosse por pena. Sentir pena não é assim tão mau. A pena é filha bastarda da paixão – As coisas que me passam pela cabeça, quando algo não está bem, e nem consigo falar.

(“Reage!”)

O meu nome é Tiago, tenho 33 anos, sou casado e pai há 2 meses. Estamos no ano de 2005. Esta noite o meu Benfica ganhou nas Antas, não assisti ao feito, porque acabei de vir do cinema com a minha mulher. Sei quem sou, estou em minha casa, não consigo falar e a minha mulher não pára de gritar por mim.

(“Tiago! Tiago!”)

Não sei como, mas há-de ficar tudo bem, mulher. Não me olhes assim nem assado. Não olhaste para mim, quando te disse que a Alice não vinha tomar conta do menino, tinha planos para o fim-de-semana, retocavas-te no espelho do hall de entrada, agarraste as chaves do carro e respondeste que era o tempo de um filme, como ir à esquina e voltar, o bebé de mãos dadas com o sono, a rottweiler a tomar conta da casa. E há esquinas longínquas. Como entrar em casa e deparar-me com um rasto de sangue. A cadela que ladrava na cozinha. O bebé que não chorava. Arrefeci num de repente de noite de Outubro. O bebé que não chorava. Culpar a cadela, solta, a ladrar. A arma da caça tão perto da cozinha, onde a preta da rottweiler não se confundiu com o escuro, onde lhe acertei de um só tiro, o último latido, gemido, adeus. O medo de ir ao berço, de te saber junto ao berço, medo de te ouvir em choro, desespero, adeus.

(“Tiago! Tiago!”)

Por favor, pára de gritar por mim. Já cheguei à sala, ajoelhei-me na carpete, e de errado vejo o mesmo que tu: um homem que não pertence à nossa casa, uma meia na cara mas os olhos abertos e a jugular desfeita, com a assinatura de dentes de cão. Podias-te acalmar, aproveitar o embalo de barco dos teus braços, que dás ao menino afinal acordado, que, me pergunto como, ainda não chorou. Eu nem consigo falar. Deixa-me recuperar o juízo. Perceber que amanhã o bebé há-de chorar, a cadela jamais ladrará, as mãos que te acordarão são minhas. As mãos que podem ser membros soldados de um cérebro general demente. Que a minha natureza pode ser esta.

Invocar o amor, recriar o amor, não perceber o amor.

quarta-feira, outubro 12, 2005

O Amor Não é Impermeável


Para o Coroneu
(o fim não é aqui)



Ela entra na banheira com o vestido mais caro que encontrou. Estende-se, analisa que por um triz a água não transborda, e pensa como sempre detestou água azul em aquários de seres humanos, a sua definição de piscinas. O azul é demasiado artificial, explicou a Mr. Auden quando o conheceu, ele calou-se mas não consentiu. Arrastou-a para o exterior do hotel. Lá fora não havia fumo, nem a música da festa. Os copos nas mãos e ao ar, os amigos de sempre e os amigos por uma noite, ficaram todos para trás, no casulo do hotel. Ela corria no escuro porque Mr. Auden andava, ao seu passo tamanho 45. Sentia-lhe a mão pesada espremendo submissão e gostou, de ter uma mão catraia. Mr. Auden arrastou-a ou ela deixou-se arrastar. Talvez porque naquela madrugada haviam flores roxas na piscina. Do tamanho de almôndegas. As pétalas pareciam papel. Flores dignas de outras águas, de ondas perfeitas, ruivas, disse Mr. Auden apoderando-se do cabelo dela, aquando o pedido de casamento. Estampou-se-lhe na cara uma expressão de quem percebeu nada. De nada lhe valeu. Porquanto ele continuou com a história das flores, que se agitavam com o vento da noite e o vento fazia-a levar dois dedos à boca, donde retirava fios de cabelo da cor das sardas, num gesto de boneca de dar corda. Pensou velho maluco, ao entender-se a boneca que Mr. Auden resolvera comprar. E quando ele a empurrou contra à ardósia do bar da piscina onde anunciavam o prato do dia anterior, ela viu-os no espelho de água azul fazendo amor e decidiu que sim, que ele era maluco e porque não, no dia seguinte casaria com Mr. Auden. Ela tinha 25, metade da idade dele. Ele era rico. Ela uma vida sem rumo, coleccionando empregos e namoros. Nem um marido, nenhum namorado rico. Findas as férias regressou a Portugal, onde às críticas das pessoas respondeu só quem lá esteve é que pode falar, não se calou. Talvez consentiu. Ela não o amava. Também não amava ninguém. Nem a si própria.

Ela aterroriza-se com a sua cara na transparência da banheira, porque o vestido mais caro de Glasgow borra a água de preto. Há cinco anos que se mudou para a cidade de Mr. Auden. Deixou de conhecer alguém. Na verdade, conheceu o marido, convivia com o casal Campbell, principalmente com Mr. Campbell, por este ser sócio e o amigo da vida de Mr. Auden, e também pela contingência de Mrs. Campbell ser muda. De referir que nunca fez nada entre as compras e as horas à janela, identificando-se com a chuva que mora em Glasgow, miudinha e igual dia-a-dia. Foi capaz de igualar o tempo passado na cama de dia e de noite. Mr. Auden quase que em simultâneo, reconheceu a sua escova de dentes acompanhada e a dona da outra escova como uma esposa de pacote primoroso e um interior doente, com o prazo de validade a expirar. Nessa mesma manhã, Mr. Auden apresentou-lhe outra pessoa que ainda hoje a acompanha, o seu psiquiatra. De pouco lhe valeu. A si nunca se encontrou, não sabia quem era antes, não sabe como é Mrs. Auden. Persistiram os medos no corpo amorfo que a enoja e que é o seu. Visitou a banheira como um muçulmano visita a mesquita. Mr. Auden endoidou ao vê-la acabada de sair do banho ene vezes por dia, e foi ele ao psiquiatra. Veja-a como uma criança, aconselhou o médico, Ela tem 30 anos, gritou-lhe Mr. Auden, mas ao chegar a casa respeitou o especialista. Com uma das mãos dominou-a pelo pulso como fizera cinco anos atrás, com a mão direita espremeu-lhe a cara dizendo, há o estímulo positivo e o estímulo negativo, ou endireitas a alma ou deixo-te com marcas que nem mil chuveiros te hão-de lavar, agora classifica este estímulo como quiseres. Fez-se boneca à qual se dá corda, quando, pausadamente, se abriu nela um sorriso. Mrs. Auden ontem à noite viu Mr. Auden dentro si pelo vidro embaciado da janela do quarto, e, pouco depois, ouviu-o com interferências da água, a cantar no chuveiro. Ela não tomou banho. Adormeceu. Ele não a acordou. Mr. Auden não voltou a acordar.

Mrs. Auden era incapaz de ir ao funeral de Mr. Auden. Ela gosta mais de se ver com o vestido molhado na banheira, do que quando o experimentou na loja, certificando-se de que era preto e o mais caro. Mr. Campbell não a condenou pela ausência no cemitério que escolheu para o melhor amigo. Horas atrás ela visitou-o em casa. Foi lá declarar que sabia da falência, sabia que não tinha nada, que precisava de um emprego. Riu-se Mr. Campbell, riu-se muito. Depois assinou um cheque, enquanto dizia compra o vestido mais caro da cidade, põe-te bonita e arranja um marido. Mrs. Campbell permaneceu calada, sem alternativa. Ela comprou o vestido, ficou bonita e encontrou-se com a única pessoa que lhe restava em Glasgow, o psiquiatra. Ao chegar a casa respeitou-se novamente o especialista. Tomou comprimidos para dormir. Só que todos de uma vez, de um só gole de álcool. Afinal falta apenas um marido e para isso, pensa sonolenta na banheira, nada melhor do que um bom banho antes que Mr. Auden daqui me puxe pela mão.
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