sábado, julho 31, 2004

Nuvens Laranja e Violeta; Não Parece o Dia Mas Já Não é Noite

Atravessaram a ponte vermelha porque ela não vive na margem sul, ele sim. E foi ele rapidamente a soltar a rolha da garrafa, que rolou pela mesa da cozinha, que pintalgou manchas de tinto no azulejo branco do chão. Foi também ele a apanhar a rolha enquanto ela agarrou a garrafa; fez-se de casa, encheu dois copos e propôs o brinde: a ti.
Não foi ele a substituir o singular do pronome, por um plural, pelo “nós”. Ela não o fez nem ele o podia fazer: existiam na terceira pessoa
ele, ela
possuíam-se na segunda pessoa
tu, ti, contigo
sentiam-se na primeira pessoa e apenas no singular
eu, mim, comigo…
Não sentiam a posse que vem pela existência do nós. Não sentimos, mas Sinto e Sentes; o que é uma grande diferença mas não é comum.
Sossegaram na varanda, nas duas cadeiras vermelhas e maleáveis que balançavam, como o vinho nos copos e com o sol a minguar. Sem um único desviar de olhos, sem que um único vestígio do tinto escapasse à saliva – nem ele, nem ela paravam de humedecer os lábios com a língua – fixavam vidros em frente assinalados por riscas brancas; típico das janelas de um prédio em obras. Mas foi a língua dele que caçou uma ideia, solta, e formou-se um arquipélago de frases:
“Se o prédio em frente fosse já habitado e de repente, alguém me visse despir-te da cintura para baixo e sentar-te em cima de mim, poderia considerar a minha atitude agressiva.”
Ela acendeu um cigarro e não olhou para o fósforo, nem para ele e disse:
“Não está ali ninguém.”
“Então, não seria agre.. Não é agressivo”, sugeriu e depois virou-se e tentou fixá-la com o olhar.
“Disseram-me que era… Achas-me agressiva?”
“Não. Directa. Por vezes sinuosa e não é um contra senso.”
“Sou da estirpe agressiva que se derrete com nuvens laranja e violeta”, riu-se e esvaziou o copo.
E algum tempo depois – menos tempo do que ele levou a soltar a rolha da garrafa – não sossegaram de frente a um prédio porque na parede em frente à cama dele, havia um espelho que os emoldurou enquanto entraram um num outro e ele disse:
“Agora derrete. Menos líquida, mais húmida. Eu quero ver. E depois ver-te a ver. E não me vir ainda. Olha-te a ti e não ao espelho. Contorces o pescoço à esquerda se te agarro os cabelos no pescoço. Olha-me ali. Até teres mais prazer. E não vais pedir para me vir; pede o prazer de me veres o prazer.”
Já não vale a pena falar em tempo, certo é que acabaram por fechar os olhos, enroscaram-se como embriões mas não podiam ficar ali nem nove meses, nem nove horas. Existiam na terceira pessoa
Ele
colocou o alarme para as 05:30
Ela
levantou-se às 06:05 e ele torceu o nariz por tocá-la vestida às 06:10.
Falaram ensonados
(em vozes de sono que não se esquecem)
o tempo todo dentro do carro, não do todo mas no
eu, tu
mim, ti
comigo, contigo…
E voltaram a atravessar a ponte vermelha porque ele vive na margem sul, ela não. Enquanto aquela noite se derretia nas águas do Tejo. E amanhecia. Enquanto as nuvens ainda eram laranja e violeta.


terça-feira, julho 27, 2004

Espetar o Dedo (Three)

Is something wrong, she said
Well of course there is
You're still alive, she said
Oh, and do I deserve to be
Is that the question?
Vedder, Gossard; Alive

Agora custa-te ser um ponto final mas enquanto ressacas, dissolve um guronsan sem esquecer o brinde ao antes em que foste um ponto de partida.
E no depois, pode custar-me ter percebido que o verbo pertencer não me pertence.

domingo, julho 18, 2004

NEU(T)RAS

Apertar uma folha de papel numa urgência do preto no branco
e largar ponto por ponto um rasto de tinta
num rascunho
Esquecer o ponto final quando não há porque ao porquê de
ninguém
e não porque alguém lembra a idade dos porquês
Emudecer até os monossílabos
e articular na ponta da língua cada onomatopeia
para que não derreta no caramelo colado aos dentes
e fixar que nem tudo o que se exprime tem som
Espreguiçar a cabeça o tronco e alma e de seguida
contrair os membros pelo atraso além da falta de espaço
dentro do cavalo de Tróia
Tomar antes do pequeno-almoço uma colher de sopa de
hidromel
Substituir os talheres pelo guardanapo
e prosseguir a limpeza da boca com garfo colher e faca na
refeição do café à entrada
Arrotar um orgasmo após o jantar
no encontro dos anónimos viciados em palavras
Passar das marcas por matar o mártir e logo
depois socorrer rabiscada num pos-it a palavra
amor
das bocas da amargura
Espetar o dedo no teu fundo
e receber o abraço do século
Congelar as lágrimas ao prever um Inverno de seca
Soprar do calendário os dias de luas
e inspirar profundamente a neura do positivo e negativo
e sai da base e nem é ácido
neutra
Trincar a essência de três túlipas
e comparar com a ressaca do dobro em cuba livres
Ouvir de tudo
para ter de aceitar absolutamente nada
nunca
(dizer nunca
repetir nunca
nunca nunca nunca)
Cortar as asas à imaginação
e colar aos ombros com cuspo
Tatuar-se em tinta depois de tirar a virgindade a
uma folha de papel numa urgência.

sexta-feira, julho 16, 2004

Joe

Estremece as pálpebras enquanto abre as duas azeitonas que tem como olhos. A cama parece mais alta. A porta mais longe. Quase que esburaca a cobertura do quarto ao fixar o tecto, branco como um quimono de karaté. É que ainda ontem, o seu tecto exibia cinturão negro por causa de um fungo. Agora não. Ele torce o nariz; perante a ausência do bolor grudado, pelo cheiro estranho que lhe invade as narinas.

Esfrega os olhos sem a presença de um obstáculo. Lá fora deve de estar claro porque o Joe só usa óculos escuros à noite, e de dia adormece-os na mesa-de-cabeceira enquanto, normalmente, também ele dorme. De noite, é a personificação do “homem Martini” nas discotecas da moda, embora seja o “Johnnie Walker” que lhe assenta na mão. Bebe sempre whisky misturado com ácidos – um dos luxos a que o Joe se dá; pela vida de gozo que leva e pelas noites de gozo que proporciona. Mesmo quando o “Johnnie ácido” o encosta a um canto – o que ocorre no dia-a-dia, melhor, noite-a-noite –, e dissipam-se as trombas de elefantes cor-de-rosa que por vezes enrolam-se à cintura de uma das suas clientes habituais, sempre que reanima é impossível a fricção directa dos olhos porque no rosto permanecem as lentes escuras. Por isso deve de ser dia lá fora. Por isso não encontra os óculos. Por isso, vê por um óculo os óculos ao constatar o desaparecimento da mesa-de-cabeceira. E também por isso, além de rodeado por paredes e um tecto completamente branco, grita «Estou no céu», enquanto espreita debaixo dos lençóis a falta dos boxers personalizados: “Here you can call me Dick”.

Estático; agora nota-se-lhe apenas movimento pela pigmentação verde azeitona da íris. A retina faz birra por uma imagem familiar. Nem que seja uma sombra de mulher entre as suas coisas. Mesmo que essa mulher não lhe traga nada de familiar, que é o habitual sempre que acorda – o que é raro – na presença da última cliente da noite anterior. E quanto aos objectos? Simplesmente desapareceram. Apenas um cheiro; em nada semelhante ao seu, nem relacionado com alguma das suas coisas ou com coisas que se relacionam através de cheiros, mesmo que não nossas. Apenas uma cama. Sem mesa-de-cabeceira ao lado. Sem óculos sobre uma mesa-de-cabeceira. Apenas uma cama mais alta, entre quatro paredes e um tecto, onde nem o fungo pernoitou. Como se uma revolta tivesse ocorrido naquele quarto e os seus pertences abalaram. Por obra do Espírito Santo, pensa ele.

Os fios do pensamento enovelam-se a uma velocidade alucinante. Pelo menos aquando a fusão dos ácidos no whisky, Joe está preparado para os elefantes cor-de-rosa, para o efeito alucinatório. Recorda-se da mãe o obrigar nas noites de insónia, a rezar as ave-marias e os pais-nossos que aprendia na catequese – de frequência também obrigatória – impedindo que ele contasse carneiros, como todos os putos na escola primária. No entanto, agora que pode numerar carneiros, Joe fixa os olhos na porta que parece mais longe do que nunca e não lhe escapa da memória a imagem do S. Pedro. Talvez uma tentativa, infrutífera, de dominar a invasão das suas narinas pelo cheiro que para além de desconhecido torna-se cada vez mais nauseabundo. Joe teima em se decidir: se o santo apenas controla as comportas celestiais ou é também ele a decretar quem viaja até o céu ou até o inferno. Neste momento, acredita que se abrir a porta e sair do quarto, do outro lado pode encontrar de tudo. Talvez porque desapareceu tudo. E nem vale a pena tomar a nuvem por Juno: aquele quarto já não é seu, desde o instante em que o tecto branco que nem um quimono de karaté, perdeu o cinturão negro pela ausência do fungo. E nem vale a pena pensar mais nisso porque neste preciso momento, a porta abre-se e não é por obra do Espírito Santo.

- Joe, não é? Temos gente para atender que só por obras de Santa Engrácia! Não imagina a sorte que teve em pernoitar na nova morgue do hospital. Aqui entre nós, porque os que aqui estão já não nos ouvem, parece-me que o Director achou que um organismo com tanta porcaria numa só noite, no dia seguinte já tinha ido desta para melhor. Desculpe lá a demora... A enfermeira do turno anterior esqueceu-se de rotular os seus pertences. Joe, não é? Pensava que era Dick.

quarta-feira, julho 14, 2004

Não me Mandes Um Postal Porque de Vez em Quando Passo por Lá

- Ser feliz

(agora que me respondes isso, lembrei-me de seguir até ali, mas antes deixar-te coordenadas porque é só abrir a porta do quarto, virar à esquerda, depois dois passos até o cruzamento da secretária com cinco prateleiras numa estante, e fingir um STOP na quarta de baixo para cima)

- Ser feliz

(agora apetecer-me que emudeças é demais porque à pouco não te esqueceu falar e
- Ser…
é tarde com os meus amigos derramados pelo álcool, dentro dos copos não há espaço sem ar e pelo tom amarelado do âmago plástico sei quem bebeu cerveja, quem bebeu sangria tatuado às riscas roxas nas pregas da boca, todos a acordar um pirilampo onde dedos seguram cigarros e lembro-me de ir com eles emitir luz, para outra rua do Bairro Alto, agora que tu falas nisso de)

- Ser feliz

(lembro-me no outro dia, outro que não tu também a jogar ao monopólio com

- O que é que tu queres?

uma casa de partida adulterada sem os dois mil escudos de quando éramos putos: “Passando aqui receba a felicidade”, na companhia de outros peões, da porteira de pé na reforma que com os dois alcança a casa do “estacionamento livre” – o capital agora presente na minha porta, no meu próprio tapete a fazer-se ouvir porque

- A menina agora tratar das contas do condomínio mas não se chateie, o que importa é ser…

a beata da porta em frente diz-se ocupada

- Obras da Igreja, percebe?

não só arranja casa para os bem-aventurados mas também uma neta adolescente

- Eu só quero ser feliz

a mesma vontade de eu a querer encher-nos o copo

- O que é que tu queres?

depois tu

- Ser feliz

depois eu

- …

agora lembrar-me que já não jogo ao monopólio para mais de uma dezena de anos e o jogo continua, sem interessar se os peões
com vinte
com trinta
com quarenta ou outros tantos “enta” anos, todos contigo também a querer ficar pela casa de partida e por isso

- Ser feliz

uma vontade de eu seguir para outra conversa no Bairro, a seguir na minha cabeça um jornalista que não conheço com uma crítica não minha mas a criticar-te

- Não traz nada de novo

depois de te ouvir até pode ser, lembrar-me de ir mas antes completar-te

- Ser…

deixar-te coordenadas porque as tenho na quarta prateleira na estante do meu quarto, no cruzamento da letra “O” com a “Q” fingir um STOP com a palma no CD do Palma, porque é só abrir a faixa número 9 para virar até onde a “terra dos sonhos” e lá

- “podes ser quem tu és…”
- Ser feliz

não é para onde agora vou e já não venho; lembrei-me de seguir até ali onde se mantém a propriedade de emitir luz, até porque à falta do insecto os meus amigos reinventam pirilampos de cigarro nas mãos, e até o mais derramado pelo álcool capaz de me perceber

- O que é que tu queres?

não menos que uma boca roxa mas de sangria ou a garganta sobre a terra
já agora com borbulhas de cerveja
agora apetecer-me uma já que me respondes

- Ser feliz)

- Enquanto secas à espera, digo a alguém que te dê de beber?

sexta-feira, julho 09, 2004

Por Outras e por Esta é que o Raio do Sol (Ainda) me Queima a Pele

Hoje deixo-te o aviso de que não te leio mais. Vi-me a desejar-te em pessoa e deixa estar se a personalidade fictícia, à vez desses teus personagens com melanina na pele. Vi-te a (quase) detectar-me como se eu um raio ultra-violeta. E és o raio de um raio (não quase) a perceber que se te apanho na pele neutra se produz vitamina D.

Hoje deixo-te o aviso de que não te leio mais.
Mais leio-te. Não hoje. Que de aviso te deixo. Por hoje.

quinta-feira, julho 08, 2004

Suicídio da Carta de Suicídio (Two)

“Kneelin', looking through the paper though he doesn't know to read
Oh, prayin', now to something that has never showed him anything
Oh, feelin', understands the weather of the winters on its way
Oh, ceilings, few and far between all the legal halls of shame”
Vedder, Gossard; Even Flow

Agá de hermético, como cada um dos vidros do carro estacionado defronte a dois ursos. Dois ursos sobre o mar: para sempre no Inverno com o agá de hibernação. Duas rochas sobre o mar transformadas em ursos. Um carro a hibernar na Praia da Ursa. Um carro mudo com a chave asfixiada pelas mãos de uma rapariga. A silhueta de uma boca de rapariga. Uma boca aberta sem moscas. O mundo cego com os restantes sentidos não apurados, com a ilusão de um carro às moscas. O mundo fora do carro enganado pelos vidros fumados. Dentro do carro uma rapariga surda para com o mundo lá fora, a olhar lá fora o mundo cego que não a vê lá dentro. Por dentro. Entre vidros fumados. Lado a lado; a caneta intacta e uma carta sem condimento. Uma folha completamente branca, completamente intacta como a caneta. Carta e caneta – ambas no lugar do morto. No lugar do condutor a silhueta de uma boca. Sem moscas. Aberta. Por dentro. Fechada. Lá dentro. Um contorno de um corpo de rapariga. Mais a dentro. Por ela adentro. Uma dor branca por coisa de nada, por nada de novo. Novamente o branco. Uma carta em branco. Sem nada. Com nada. Novamente o nada. Andar para trás e para a frente. Ou vice-versa. Ou o mesmo que não andar – como quando a rapariga cheia de pressa, fixa os olhos nos pés. E é o mesmo que não andar quando fixa o passo a todo o gás. Parece não andar. O mundo cá fora a fixar a rapariga. À pressa. Parecer que ela não quer andar e não é o mesmo que não andar. O mundo de fora. Cego. A silhueta de uma rapariga a fazer sentido, a olhar-se de dentro. Ela por ela adentro. Tomar sentido aos sentidos já longe. Encurralada. Entre cinco sentidos e um sem número. Sem sentir. O sentido do sentimento. Sexto, não. Intuição, não. Insensível. Por ela adentro. Um Mundo. Camuflado. Defumado por cada um dos vidros do carro estacionado defronte a dois ursos. Um carro a hibernar na Praia de Ursa. A ignição muda pelas mãos de uma rapariga, a asfixiar a chave do carro. Dentro do carro. Uma rapariga surda para com o mundo lá fora, a olhar lá fora o mundo cego que a olha por fora. Por dentro do carro: o lugar do morto ocupado por uma carta despida. De despedida. Sem despedida. Sem dedicatória; inscrição do nada pelo nada de palavras. Um carro mudo e a rapariga a hibernar uma decisão: para sempre não ser toda ouvidos. Por isso, uma rapariga surda para com o mundo. Porque o carro estacionado defronte a um mundo cego, um mundo incapaz de parecer mais que matéria vegetal. Como a folha de papel. No lugar do morto. Branca. Intacta. Ainda no nada. Agora o nada. O fundo do fundo. O branco na folha. Asfixiada pelas mãos de uma rapariga decidida. Parecer que ela não quer andar e não é o mesmo que não andar. Até o lugar do morto. Ocupado pelo branco. Pelo suicídio. Pela morte precoce de uma carta de despedida. Restar nada. Não às palavras. Do fundo do fundo. Não à despedida. Não há palavras. Com agá de haver. Como a letra agá que existe e não se lê. Até que uma mão apague o mutismo da letra agá, até que uma mão mate súbditos do reino das palavras. Como de súbito, a silhueta de uma mão de rapariga a devolver a fala ao carro. Ao encontro. Por coisa de nada. Libertar a chave. A dor branca. Por nada de novo. Acelerar o voo branco da carta. Sem sentido. Não tomar sentido aos sentidos já longe. Libertar e libertar-se. Alívio. Uma dor de tom lívido. Acelerar o suicídio da carta de suicídio. Acelerar-se. Ao encontro. Um carro de encontro a duas rochas que formam dois ursos sobre o mar: para sempre no Inverno, com o agá de hibernação.Com tudo. A restar nada. A carta não escrita. A levar tudo. Até as palavras. Principalmente as palavras. Principalmente não deixar a insustentável imortalidade da palavra.

quarta-feira, julho 07, 2004

DES(A)PERTAR

Na incerteza do sono passou-me um unicórnio ao lado e de um só lampejo; seres tão real como asas num cavalo.
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